Olhos da Cara
Escrito por Dedé Vieira
Olá! Me chamo Ana Beatriz, tenho 12 anos e moro em Cotia,
interior de São Paulo. Resolvi escrever esta carta me culpando por tudo, caso
alguma coisa saia errado.
Aos meus 9 anos tudo que eu sonhava era ter uma casinha de
boneca, mas não era uma casinha qualquer, era A casinha de boneca. Papai
conversou comigo e me fez ver que ele não tinha condições de comprar, era muito
caro e ele estava com muitas dívidas a pagar. Mamãe também conversou comigo e
falou um negocio de moda passageira, que logo aquele meu desejo iria passar.
Mas não passou. Durou 3 longos anos e nem sinal de um dia eu ter aquela
casinha.
Eu já sabia mexer muito bem no computador igual gente
grande. Comecei a procurar um jeito de conseguir o dinheiro necessário para
comprar a Casinha. Tudo parecia tão difícil já que eu não tenho idade para
trabalhar. Com o computador ligado, uma dessas janelinhas de vendas surgiu na
tela, parecia que tudo foi combinado, na janela tinha uma frase que dizia:
Ganhe muito dinheiro fácil e rápido!
Tentada, eu cliquei e descobri que era um site de compra e
venda de órgãos. Confesso que me veio muitas ideias na mente e quando me dei
conta estava fazendo o cadastro no site. A partir daí tudo foi dando muito
certo, recebi a resposta positiva do site, consegui enganar meus pais com a
assinatura e irem comigo aos correios entregar uma carta ao “Papai Noel” (Se é
que vocês entenderam), enganei primos e tios para me levarem pra “Passear”. Não
sei que palavra os adultos usam para falar disso, mas qualquer que seja, sei
que não é uma palavra boa.
Tudo que eu queria saber era da Casinha de bonecas. Um
Casinha que mais parecia uma casa de verdade, enorme. Pra colocar mais “pilha”
em mim, vários filmes, novelas e comerciais de televisão falavam da bendita.
Não pensava em mais nada só em ter a casinha e que meu plano desse certo.
Era uma noite de Domingo, estavam todos na sala assistindo
TV, minha mãe e uns parentes que moravam em São Paulo. Estávamos todos felizes,
porém, em meio a tantos sorrisos, um baralho estranho que vinha de fora
estragou aquela noite, homens discutiam com meu pai no portão, que os enfrentou
até eles mostrarem as armas, entraram na casa, pediu pra todo mundo fazer
silêncio e perguntaram:
Cadê a Ana Beatriz?
(Falando diversos palavrões)
Estava muito assustada e chorando sem parar, mas me
apresentei a eles. Me puxaram com muita violência e me levaram até o carro
deles, o carro era uma van preta ( não conheço nome de carros). Lá dentro, me
amarraram e taparam meus olhos. Depois disso escutei muitos tiros, muitos
mesmos que até doeram nos ouvidos. Entraram dentro da Vam e saíram como diria
meu priminho “a milhão”.
Num lugar muito estranho me soltaram e uma mulher veio falar
comigo:
-Você é a Ana Beatriz?
Sou sim. Com muito choro respondi a ela.
Tentando me acalmar, dizia:
-Não chora, tudo vai ficar bem, a gente sabe quem é você.
Tudo vai ficar bem.
Continuando ela me perguntou:
-Vem cá! Pra que uma mocinha tão linda como você queria
tanto dinheiro, afinal?
Meio que parando o meu choro, agora só com soluços respondi:
- Pra comprar uma Casinha de Bonecas, já que meu pai não tem
condições de comprar.
A Mulher:
- E você leu direitinho o site?
Eu:
Sim!
A Mulher:
- Então, nós podemos te dar o dinheiro, só que vamos
precisar tirar um dos seus rins. Descobrimos que você tem dois desses rins e
precisamos de um deles, pra salvar vidas.
Eu:
Não quero tirar meu rim. Eu não quero mais o dinheiro. Pode
ficar com vocês, só me leva de volta pra casa, por favor. (Em choro novamente
foi o que respondi)
A Mulher:
Não podemos te levar de volta. A gente fez um trato, lembra?
Tem a assinatura do seu pai, não dá pra voltar atrás, por que se não muita
gente vai ficar triste.
Eu:
Assim como eu estou triste?
A Mulher:
Sim, assim como você está triste. Mas eu tenho algo que vai
te deixar muito alegre.
Eu:
Nada vai me deixar alegre. Eles mataram meus pais, eu ouvi
os tiros. Me leva pra casa por favor, a vizinha cuida de mim.
A Mulher:
Calma, vem cá que eu te mostro, não precisa ter medo!
Me levando pra dentro de um galpão gigantesco, eu comecei a
chorar quase gritando, quando lá no fundo eu avistei algo que me fez parar de
chorar rapidamente. Era A tal sonhada casinha. Sim, estava ali, toda
completinha com todos os acessórios, como era linda e enorme. Minhas lágrimas
por hora eram de felicidade. Mas logo bateu a tristeza de novo.
-O que foi que eu fiz Deus. Meus pais morreram por minha
causa. Tudo por minha causa.
Logo em seguida quando Ana Beatriz menos esperava, seus pais
apareceram na sua frente junto com todos os seus parentes que estavam em sua
casa naquele Domingo. Correndo com um largo sorriso foi abraçá-los.
Ana:
Mas como, eu ouvi os tiros?
Seu pai:
-Tudo foi uma grande lição pra você aprender que nem aquilo
que a gente quer a gente pode ter. O que você fez foi muito errado, o papai
ficou muito triste. Nós descobrimos tudo por que todos os sites que são
utilizados no computador ficam gravados. Você esqueceu de apagar o histórico,
filha. Graças a Deus!
Ana:
Então tudo foi uma grande brincadeira.
Sua mãe:
Sim, minha filha. Porém o site que você entrou era de
verdade e tinha gente muito perigosa por detrás. Conseguimos alertar as
autoridades locais, a policia e essas pessoas más foram presos a tempo. Mas
você correu um grande perigo.
Ana:
E essas pessoas da Vam, aquela mulher, as armas, os tiros,
os palavrões?
Seu Pai:
São tudo atores, amigos da sua prima Letícia, ela está numa
escola de teatro e nos ajudaram a fazer essa brincadeira para te alertar sobre
os riscos que poderiam ter acontecido.
Sua mãe:
É minha filha, nunca mais faça isso. A TV, as revistas, o
mundo inteiro, têm muita coisa ruim e eles querem isso que nós ficamos
encantado com coisas modernas, luxuosas, coisas muito caras como aquela
casinha.
Ana:
Entendi, nunca mais, nunca mais farei isso, nunca mais.
Aproposito, essa casinha é pra mim?
Sua mãe:
Não, seu tio que trabalha em loja, pegou a Casinha com o
chefe dele emprestada pra gente fazer essa brincadeira, mas terá que devolve-lá
Ana:
Entendi, mas tudo bem. O melhor presente e a coisa mais
valiosa eu já tenho que é a minha família.
Assim todos deram muitas risadas e foram terminar o domingo
numa pizzaria ali perto, felizes da
vida.
Bem que a história poderia terminar assim, mas na verdade
não foi. Realmente os pais e parentes de Ana foram assassinados. Três semanas
depois o corpo de Ana foi encontrado numa mata próximo a Jandira, também
interior de São Paulo.
A carta inacabada que ela escreveu foi escrita quando ainda
estava em cativeiro e o triste fim foi que todos pagaram pela ostentação de
Ana. Uma garota de 12 anos que entregou os pais a morte por causa de um
brinquedo do momento.
A quadrilha, nunca foi encontrada e está por ai bem mais
perto do que podemos imaginar. Afinal enquanto houver desejo, ostentação e
propaganda, ainda haverá mercado para eles.
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