Conto de Herlon Oliveira

Aurora        


Já tinha amanhecido há algum tempo, o sol entrava vivo e radiante pela grande parede envidraçada que havia no quarto. Ali deitado, um homem à beira dos seus oitenta anos, passava o tempo ouvindo os pássaros em uma árvore do outro lado da janela, se distraia com a cantoria enquanto esperava sua visita que se tornara mais frequente na última semana, de certa forma e a sua maneira ele já estava sentindo a falta de sua amiga, normalmente ela vinha assim que o sol raiava. Carinhosamente ele a apelidou de Aurora, seu nome ele já sabia, no entanto preferia chamá-la de Aurora, pois os primeiros raios da manhã sempre a traziam. 

       Levantou-se com um pouco de dificuldade, suas pernas já não tinham mais aquela destreza, o dia estava ensolarado, especialmente bonito, nuvens esparsas no céu, raios de sol vencendo as frestas entre as nuvens em um balé entre luz e sombras, mas o dia não era sombrio, era um daqueles dias em que você sente a energia de tudo a sua volta, revigorante, o velho homem sentiu um prazer quase juvenil ao sentir o sol aquecer suas bochechas, rapidamente se esqueceu dos demais problemas que pensava com frequência, era um dia de paz. 

—Vejo que está animado meu caro João – disse a mulher ao entrar pelo quarto – Que bom, fico feliz em vê-lo assim. 

—Aurora minha amiga! Achei que não viria mais hoje – respondeu João sorrindo – Pensei que já que não veio me ver, acabei ganhando como recompensa esse dia maravilhoso! 

—Tive uns problemas pelo caminho, nada demais – respondeu Aurora – Coisas do trabalho, mas você sabe que eu não deixaria de vê-lo – concluiu ela com um belo sorriso. 

      Aurora era uma figura encantadora, jovem, com aquele sorriso que enche o ambiente, carismática, uma beleza peculiar, olhos castanhos, longos cabelos encaracolados, pele morena, sempre muito bem vestida, com a elegância e discrição extrema que seu cargo exigia. 

—Seu trabalho é um tanto quanto complicado, não é mesmo? Imagino que você sofra muita rejeição pelo que faz, mesmo assim você nunca deixa de sorrir ou de ser educada, admiro você por isso. 

—Bom, a rejeição faz parte da minha função. Mas existem algumas pessoas como você que entendem perfeitamente que meu trabalho é necessário, e que o que eu faço não é pessoal – Ela não pode conter uma gargalhada – Você acredita que muita gente quando me vê, pragueja, se desespera, eu me seguro às vezes para não cair no riso na frente da pessoa, confesso que perderia muito a credibilidade do meu trabalho. 

—Já pensou! – respondeu João emendando quase uma crise de risos – O cara vai pensar que é pegadinha, que alguém quis pregar uma peça nele. 

Os dois tinham uma sintonia tão bela, embora a diferença de idade entre eles fosse gigantesca, a sabedoria e a complacência eram mútuas e divididas igualmente em uma relação sincera e benevolente. Uma amizade que parecia existir a séculos, no entanto foi feita nos últimos dias, até Aurora se espantava com tamanha afinidade que eles tinham, para ela isso era novidade. 

—Mas me diga Aurora – perguntou João coçando o queixo curioso – Seria hoje o dia que me levará daqui? Já estou cansado de ficar nesse quarto, embora seja muito confortável, mas você há de convir que é meio cansativo ficar aqui assim! 

—Ainda não João! O pessoal ainda não preparou sua acomodação devidamente, e eles não me dão informação de quando, só me dão a ordem – um olhar de pesar preencheu o rosto dela nesse momento. 

—Mas então porque vem aqui todo dia? Não que eu esteja reclamando de sua companhia, ela é muito agradável por sinal, aprecio nossas conversas, mas pelo que entendo você normalmente só aparece aqui para levar as pessoas para outro lugar. Não é mesmo? 

—Achei que ia reclamar que não me queria mais como amiga! - respondeu Aurora com um sorrisinho de deboche – Sabe João, conversar com você tem me feito muito bem! Sua visão sobre a vida me faz querer entender melhor as pessoas, digamos que estou um pouco mais humana depois disso! 

—Olha, não quero atrapalhar seu trabalho hein! – disse João soltando outra gargalhada – Daqui a pouco te demitem! 

—Impossível! – disse ela – Não vão achar ninguém com minhas qualificações – completou com um balançar de cabelo e uma piscada de olho – Você é um homem muito sereno e tranquilo, seus medos parecem que foram todos dominados, queria ter conhecido mais pessoas como você. 

—A vida nos faz vários desafios, estradas tortuosas e nos trazem muitas pessoas que nos mostram o melhor e o pior! No fim, acho que são as pessoas com quem nos relacionamos durante a vida que nos fazem humanos de verdade. Nascer e crescer, não nos torna um ser humano, apenas nos leva à cadeia natural, como outro animal qualquer. Nossa capacidade cognitiva é o que nos difere dos outros animais, mas às vezes nos tornam seres irracionais com cérebro. São incontáveis as situações em que humanidade usa essa sua vantagem evolutiva para cometer as piores atrocidades uns com os outros. Mas mesmo isso, mesmo sendo levado para o lado destrutivo é um traço de humanidade. Eu que já fiz parte dessa humanidade apodrecida, hoje procuro pelo lado bom, procuro a beleza que esse entrelaçamento nos reserva, o homem que escolhe esse caminho ruim, as vezes chega no fim de sua vida naquele curto espaço temporal precisa confrontar tudo isso, acredito que seja muito perturbador. – concluiu João olhando para Aurora que quase não piscava ao vê-lo falar. 

—Me parece um pouco trabalhoso – respondeu ela – Paciência não é o meu forte, em certas ocasiões tenho que contar até mil para não perder o controle, essas construções, esses relacionamentos são muito complicados, passionais, não sei me daria bem nessa! Com você eu me sinto um pouco mais confortável, sinto como já te disse algumas vezes, uma paz imensa em você, mesmo aqui e agora, junto de mim, está sorrindo feliz! 

—Bom, eu tenho meus medos, e sempre temi as consequências de meus atos, o que seria de mim no fim, pelas coisas que tinha feito, enganei quem eu amava, menti para pessoas que confiavam em mim, usei de planos maliciosos para conseguir me dar bem em meus trabalhos, negligenciei por muito tempo minha família, mas consegui enxergar e reparar boa parte disso a tempo. Passei a ouvir o que tinham pra me falar, deixei de ser imperativo, autoritário e comecei a dar valor às pequenas coisas. 

—Isso se deu por causa daquele nosso primeiro encontro? Foi há quantos anos? 

—Sim, com toda certeza – respondeu João – Eu naquela época te achava muito inconveniente, pensava que vinha me atrapalhar, e não tinha maturidade para ter uma conversa como essa contigo, de igual para igual, meus medos eram muito maiores, eu era um covarde sob uma pele de machão, um grande idiota! 

—Não se preocupe – respondeu ela – Não foi o primeiro idiota que cruzou meu caminho – mais um sorrisinho de deboche. 

—Mas me conte Aurora, como você nos vê? 

—Vocês são demasiadamente controversos, mas confesso que poucos me deixaram curiosa como você. Senão eu não deixaria minhas tarefas para essas nossas pequenas pílulas de conhecimento mútuo, embora eu não possa te falar muito, mas posso te contar histórias que corroborariam ou não com suas teses. No entanto acho que nada do que te disse até o momento mudou seu conceito sobre mim, e com certeza fico feliz com isso. Sabe o que realmente me incomoda? Continuou Aurora olhando para o sol no lado de fora da janela, agora ainda mais altivo e vivo, havia ganhado força, espelhando ainda mais luz no quarto – Essa visão distorcida sobre meu trabalho é obra de vocês mesmos, tratam de mistificar tudo que faço, eu me mostro de acordo com cada um, que consequentemente me vê como pode, quando se deparam frente a frente comigo se veem refletidas como um espelho, se você tem uma alma má e carrega os piores sentimentos consigo, eu sou realmente feia, mal cheirosa, um ser desprezível, amedrontador, ou o contrario, você mesmo é um bom exemplo disso João, me vê como amiga, confidente, se sente confortável na minha presença, mesmo sabendo que a qualquer momento posso vir lhe buscar. Eu nunca saí de capa preta, e foice na mão, com aquele rosto cadavérico, flutuando feito fantasma, e se um dia eu parecer assim para alguém é porque aquela alma é tão horrenda quanto essa figura, eu sou o reflexo da alma de vocês. 

—Tenho que confessar que essa face que pintam de você é ridícula – respondeu João nitidamente envergonhado – Esse medo da morte faz a humanidade fazer coisas incrivelmente idiotas, muitas culturas até te veneram Aurora, mas me parece ser um culto em busca de poder, como se eles falassem aos inimigos que o maior medo da humanidade que é a morte, para eles não existe. No fundo acho que essa ideia de que a morte é uma coisa ruim é alimentada por um somatório de culpa, medo e vaidade, medo da punição dos nossos pecados, a vaidade de simplesmente desaparecer e não ter um legado e culpa por não termos mais tempo talvez de repararmos algum mal que fizemos durante a vida, bom eu tive sorte de conseguir me livrar de ambos. 

—Bom, eu acabado sendo culpada por apenas dar alivio a vocês – concluiu Aurora – Minha função é dar descanso a corpos mutilados, doentes e atormentados, eu tiro a dor e sofrimento que lhes apresenta. Alguns mais atormentados me chamam antes da hora, e mesmo assim eu vou ao seu chamado, mas chego à frente deles e o que eu recebo? Medo e aflição tentam fugir a todo custo, mas foram eles mesmos que me chamaram. Não entendem que a beleza da vida é saber que eu estarei no fim para guia-los. Quem me dera João que todos me recebessem como você me recebe hoje. 

Nessa hora, enquanto ouvia Aurora falar tudo aquilo, ele olhava seu corpo deitado na cama, cheio de aparelhos, em uma sintonia de bip’s enquanto sua respiração pesada era forçada por um trambolho ligado a suas vias respiratórias. Se ver naquela condição era de certa forma, reconfortante, pois ali via que a fragilidade do ser humano se contrastava com a força de sua alma, que ali de pé, ao lado de si mesmo, conversava com Aurora sobre a beleza e a dadiva que lhe foi dada. 

Aurora bateu em seu ombro e com palavras carinhosas se despediu: 

—Preciso ir meu querido! Meu trabalho não pode se acumular, senão vou ter que contratar um ajudante – finalizou ela caminhando até a porta. 

—Até mais Aurora, espero que até amanhã você já tenha arrumado meu quarto, lembre-se minhas costas doem, preciso de alguns travesseiros adicionais. 

Então ela deixou o quarto com a mesma sensação humana que tinha todos os dias, no fim de cada conversa com João. Felicidade. 


FIM

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