Acervo da Karine Aragão



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Notas de decisão e saudade
por Karine Aragão, 08/07/2019

1_ Se por um descuido a saudade se propusesse a sair de fininho e se alojar num canto qualquer, e por um grande motivo permanecesse ali sem precisar estar em mim como um furacão. Ou apenas como uma garoa ou um chuvisco qualquer. Mas, infelizmente, não funciona desse jeito, a saudade tem o sono leve e sempre insiste em se apossar da fragilidade que deixamos à mercê.
           2_ Se for pra me dizer que eu tenho que secar o rosto e seguir em frente, não precisa me ligar. Hoje eu estou me permitindo chorar e duvidar se eu realmente tomei a decisão certa. Não a melhor, mas a certa. Não quero que você me diga o que eu tenho que fazer, dar opinião sobre a vida dos outros é sempre mais fácil… Eu quero ficar quietinha, refletindo sobre o meu não saber. Isso não quer dizer que eu estou parada, só tirei um tempo porque a gente não pode passar a vida inteira fingindo que o que acontece aqui dentro não importa. E, se for preciso, eu quero recuar. Então, só venha se for pra ficar em silêncio, abraçada, junto comigo, enquanto as lágrimas descem sem parar.
 3_ Ela queria ser a garota da foto. Nada mais. Não para que pudesse mostrar ao mundo sua felicidade. Beatriz aceitaria a plenitude da satisfação silenciosa e verdadeira. Mas ela queria as fotos para enfeitar a casa que, talvez, nunca terão. Imaginou-se ao lado dele. Viveu uma história que não existirá. Já saberia narrar, com detalhes, até o pedido de casamento e os problemas com os futuros filhos. O coração, às vezes, insiste em brigar com o destino, em vez de deixar o vento seguir. As histó
rias tristes estão aí, fazer o quê?… Ele nunca seria dela, e, por isso, ela o teria para sempre…
           4_ Que a chuva vem antes do arco-íris todo mundo sabe, mas será que precisava chover tanto assim? Briga em casa, briga com o namorado, briga no trabalho, e a frase que martelava a cabeça de Carolina: eu aposto em você! Quando tudo o que ela queria era gritar pro universo: Não aposte em mim! Não me faça destino de suas expectativas se eu não sei nem quais são as minhas. Não conte comigo pra conquistar o que nem você realizou. Não me idealize. Não me ache melhor. Não me torne responsável. Não diga que sabe que eu consigo já que nada nesse mundo é totalmente definido. Me esqueça. Me deixe chorar se eu quiser. Me permita ficar satisfeita com o segundo lugar. Quem disse a você que eu quero chegar em primeiro?          
           5_ Na cidade em que todos amavam o bege, ela partiu segurando em um balão vermelho, e, para isso, precisava aprender a viver sem os pés no chão. Quando deixou a terra, a cor forte ainda não lhe era familiar, ela a enxergava, com admiração. O incômodo, provocado pelo olhar fixo, não fazia com que ela hesitasse em olhar mais uma vez… A solução era brincar de abaixar a cabeça, como quem esquecesse que o balão estava ali, e levantar logo depois, numa espécie de surpresa clandestina, em uma aventura planejada. 

         Dividia-se entre a percepção do balão e a alegria dos pés suspensos, sem a estabilidade provocada por um chão firme, estava entediada de repetir os mesmos passos todos os dias, apesar da vertigem que, às vezes, a acometia quando sacudia os pés e os percebia completamente soltos. Afinal, a liberdade era isso mesmo, um céu aberto que amedronta por sua imensidão…    Quando sentiu a mão cansada por estar há horas segurando o balão, simplesmente o soltou. Não suportaria mais ficar presa a nada. A imagem que se viu foi de Clara flutuando, em queda rápida, para que pedaço do chão não se sabia, mas exibindo a boca apertada e os olhos arregalados de quem apenas sentia o vento passar, sem querer aprisioná-lo…

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                         Compulsão de enganos
por Karine Aragão, 12/06/2019


  Não vou dar nomes aos meus personagens porque não quero créditos pela história contada. Que se afastem de mim quaisquer possibilidades de reconhecimento. Não almejo a fama. Me basta dizer que essa narrativa não passa de fatos cotidianos que poderiam pertencer a rotina de qualquer um. Talvez você se identifique. Somos todos pessoas normais e comuns dentro de uma rotina mais comum ainda. Por mais que alguns tentem se desviar dessa normalidade e afirmarem-se como diferentes. Todos nós nascemos, vivemos e morremos.
  Em tempos distintos, de formas distintas. Não interessa quem é você ou todas as realizações da sua vida, quanto dinheiro ganhou, quantos amigos fez. O esquecimento é seu fim. O fim é seu fim. Não, não deliro. Os acontecimentos que aqui se passam são bastante reais. Quisera poder voltar no tempo e organizá-los de maneira mais lógica, mas a vida insiste em sequências imprevisíveis. Escrevo para esclarecê-los. Narro para contar as aventuras de um querido labrador champanhe de cinco anos. Ou a história de um pequeno coelho cinza. Inebrio-me pelas causas e efeitos de minha narrativa, pois a vida não passa disso mesmo. Causa e efeito.
        Aos trinta ou quarenta anos divorciei-me. Achando que meu casamento decorria da mais simples tranquilidade que domina todos os casamentos, cheguei a casa, tirei os sapatos e coloquei os pés no chão gelado para contrastar com a quentura ainda viva dos sapatos. Tomei um banho demoradamente para que as articulações pudessem relaxar. Vesti o mesmo pijama da noite anterior e fui dominado pela preguiça de despi-lo quando percebi uma mancha de pasta de dente. Fui até a sala e sentei-me no sofá. Antes mesmo que pudesse ligar a televisão, minha mulher abriu a porta abruptamente. Vestida de preto, com os cabelos despenteados, assustou-se ao me ver e não pode segurar o desejo impetuoso de verbalizar a surpresa. Apenas consenti explicando que a última reunião do dia fora cancelada. Ela me olhou, apenas gesticulou com a cabeça e caminhou para o quarto.  
De um relance voltou, encostou-se na parede tentando resistir a ela mesma e me disse que tinha um amante. Apenas levantei, fui até o quarto, abri o armário e aventurei todas as suas roupas pela janela. Que tivesse um amante, mas que não ocupasse meu armário com futilidades. Também me senti impelido a esvaziar a cômoda e a estante de livros. Estava feliz de ter mais espaço. A casa vazia me dava uma sensação de calma que eu me esquecera. Pedi as chaves. Queria sentir que nada poderia me surpreender quando estivesse sozinho. Aos gritos e lágrimas da permissiva mulher, cogitei também jogá-la pela janela. Seria o perfeito encerramento.
De uma forma ou de outra, interessa que eu passei a me sentir sozinho. O vazio não mais me preenchia. Faltavam sons não produzidos naquela casa que já fora habitada por duas pessoas. Os amigos eram presença constante, mas não definitiva. Vinham e iam em todas as noites em que eu não ia. Enchiam-me com assuntos triviais. Com risos e alegrias despretensiosas. Eu necessitava de algo mais permanente. De alguém que eu pudesse não deixar ir, ou que não quisesse ir. De um olhar complacente sempre que eu chegasse a casa. O ar uníssono já estava me deixando impaciente. Não era somente uma companhia. Eu precisava de um cúmplice. As mulheres já não me serviam exceto para o sexo. Com facilidade eu me despia delas após o gozo. Sem culpa. Sempre fora da minha casa. Eu respeitava aquelas paredes. (...) 


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                                  Em pedaços
por Karine Aragão, 16/05/2019

 Do que tinha, nada a faltava. 
         As denotações improváveis geravam paradoxos em um litoral de pensamentos que questionavam se esse mar realmente a pertencia, pois andava com uma bússola sem norte. Quantas impressões a deixavam em uma cachoeira aprisionada. Queria uma vida com o verbo resetar em que um marca livro virasse um marca texto. Se tivesse que caminhar, que fosse com as mãos. A saudade era um bicho solto e a vida lhe dava pregos que ela colocava na parede quando a proximidade nada valia porque era menor que a distância. 
         Os dias tranquilos precisavam de vulcões. O remédio, então, era aceitar. Remediava-se de aceitações e de vinhos no frio e na chuva que convidavam à reflexão. Uma trama de pessoas que se encontravam em um Monet. Demorava, e o prazer ficava nublado. Constelações sem luz. Escuros brilhantes. Turbilhões. Um banho de chuva a tomou. Quem disse que o arco-íris tem apenas sete cores? Um pouco mais que nada por um sorriso branco e preto. A profunda distância entre olhar, ver e enxergar. A quantidade necessária de algo porque para o muito faltava pouco. A chuva estava prestes a tocar a sirene. Felicidade nublada por nuvens azuis. Desejou dias assim, dias com sim. E de repente, tudo. A beleza do dia revela tudo o que tinha perdido nele. Chuva-calha. Lágrima-vinho. Um cheio de vazios. Pra que chegar agora se o tempo não é esse? Folha em branco é palco. Várias versões de várias histórias certamente erradas.
A palavra era revolta contra o inominável em vãos de desvãos que sempre vão. Porque o agora era o amanhã. Flores de pétalas que não estavam mais. O espontâneo do planejamento era dar errado.  Meio termo não, melhore os argumentos, meu bem... Café amargo a despertava antes do acordar. Todas as coisas tinham sua ordem, até a loucura. O livre-arbítrio era uma decisão difícil em meio à doce arte do certo não provável e à sinestesia de abrir o olhar ao gosto e ao aroma do mundo em que toda quebra era ganho. Querendo uma palavra vazia que pudesse preencher, pois sabia que toda realidade era ficção. Um recomeço para um começo retrospectivo. E a vida era feita de escutas na ousadia da felicidade. A vida é mesmo pra ser vivida. E embora a sala estivesse vazia, preferiu esperar de pé. 
De pouco nada. Explicações levam muito tempo embora. Conhecer-se é a melhor forma de aceitar-se. Fingia a felicidade e precisava de doces, vestida de egos e de desejos. Acostumava-se ao mais ou menos embora chovesse lá fora. De ângulos a vida entende, mesmo no enquadramento da lógica imperfeita. A certeza de que o mundo não gira ao contrário só porque queria ver a felicidade invadindo a porta. Decidia sua vida fazendo escolhas enquanto estava ocupada. Tão perfeitamente quanto as linhas eram tortas e o norte se foi, já que perder o rumo também é direção. O bom é que as coisas mudam... inconstantemente. 
         A vida ia sendo construída, sem saber exatamente as margens que queria atravessar. A raiva era criatura que crescia dentro dela. Todos precisavam de uma metamorfose diária porque as frustações pesavam para o fundo, e só os sonhos não alcançados podiam suspender. Seguia conduzida pelos dias, com medo de alterar os ponteiros, na febre de sentir que expulsava os medos. Talvez todos os fios dentro dela tenham arrebentado, construindo sem saber o quê, vivendo sem precisar saber. A vontade era o que a tornava diferente em um lugar real, com pessoas reais, onde ela não queria ficar. O que poderia ser se o fim não acabasse?
Ir embora era bom, se realmente fosse. Se tiver que lembrar o que sou, por que ser?
         A afirmação da liberdade nunca era verdadeiramente livre. Se ainda não tivesse sido hoje, deveria agir para que fosse até o final do dia. O valor do silêncio estava nas palavras cuspidas. O não saber a movimentava e a ferrugem dos olhos a inebriava.
Queria ser feliz, entretanto, vivia.  


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A Teia dos Sonhos
por Karine Aragão, 06/05/2019

        Tem dias que são mais difíceis que os outros... Se eu tivesse que escolher uma palavra para definir o mundo, seria, em letras gigantescas, INJUSTIÇA. Às vezes, a vida parece funcionar numa lógica maluca em que as pessoas boas fazem parte de um grupo, muito dedicado, que cava um buraco, subterrâneo e profundo, rumo aos infinitos problemas, às frustrações, às decepções. As coisas ruins acontecem, faz parte do ciclo da sobrevivência humana, da seleção natural, do que quer que seja. Quem se adapta melhor aos contratempos vive mais. Mas sabe aquela sensação de olhar pra alguém e pensar ele não merecia toda essa infelicidade? Pois é... A tristeza tem família grande... Anda junto com a angústia, com a desilusão, com a melancolia... 
        Pode ser bom aluno, bom filho, bom irmão, bom amigo, e, mesmo assim, existirão horas em que a vida parecerá se voltar contra você e o deixará sem saída. Nem todos os talentosos alcançam o sucesso. Nem sempre acreditar é suficiente. Nenhuma solução. Nenhuma vontade de continuar. Nenhum motivo tão importante a ponto de valer a pena ser forte e resistente. 
Uma sala escura se forma em nossa frente, o olhar nada mais consegue ver, qualquer barulho se torna um zunido interminável. A cabeça dói, o corpo quer apenas deitar na cama. Enquanto dorme, acha que não pensa. Se pudesse chorar, talvez, fosse mais fácil, mas as lágrimas estão perdidas em algum baú dos olhos. Um grito, que também não consegue sair. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Porque ficar calada parece inevitável diante de tantos vai e vem ruins. (...)

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